Nos últimos anos, testemunhamos uma transformação significativa nos hábitos de consumo cultural.
As livrarias, outrora templos do conhecimento e da descoberta, enfrentam desafios sem precedentes.
A ascensão do digital, mudanças nos comportamentos dos consumidores e crises econômicas têm impactado profundamente o setor.
Qual o futuro das livrarias? E como as novas gerações estão lidando com o consumo de conteúdo? Neste artigo trazemos uma análise do mercado e falamos sobre tendências e comportamento de consumo. Vamos?
O declínio das livrarias físicas
No Brasil, o número de livrarias encolheu 30% na última década, com mais de 21 mil estabelecimentos fechando as portas. Grandes redes, como a Saraiva e a Livraria Cultura, enfrentaram dificuldades financeiras, resultando em processos de recuperação judicial e, eventualmente, falência. A Saraiva, por exemplo, teve sua falência decretada em outubro de 2023, após anos de prejuízos e fechamento de lojas.
Em Portugal, embora o cenário não seja tão drástico, também houve uma redução no número de livrarias, especialmente as independentes. A concorrência com gigantes do comércio eletrônico e a mudança nos hábitos de consumo têm pressionado os pequenos livreiros.
Um caso emblemático é o fechamento de três livrarias do grupo Leya no Porto, Aveiro e Viseu até janeiro de 2025. Segundo Pedro Sobral, diretor-geral de edições do grupo e presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), a decisão foi motivada pela “enorme pressão imobiliária”.
A ascensão dos livros de colorir
Surpreendentemente, os livros de colorir têm ganhado destaque nas listas de mais vendidos. Em março de 2025, cinco dos dez títulos mais vendidos no Brasil pertenciam a esse gênero. Esse fenômeno tem sido impulsionado não apenas pela busca por atividades relaxantes, mas também por tendências virais nas redes sociais, especialmente no TikTok.
Além disso, a Bookinfo relatou que, na semana de 3 a 9 de março de 2025, os livros de colorir “Do dia para a noite (Day to Night)” e “Dias Quentes (Spring Summer)”, ambos da autora Bobbie Goods, ocuparam as duas primeiras posições entre os mais vendidos, com 8.937 e 7.886 exemplares vendidos, respectivamente .
Vídeos com hashtags como #ColoringTherapy, #ColorWithMe e #ArtTok acumulam milhões de visualizações, incentivando jovens e adultos a redescobrirem o prazer de colorir. Influenciadores digitais compartilham suas rotinas de autocuidado, frequentemente incluindo momentos artísticos como prática de mindfulness, o que gerou um efeito cascata nas vendas.
Essa tendência também impulsionou o mercado de papelaria: itens como canetinhas, marcadores e lápis de cor tiveram um aumento de mais de cinco vezes nas vendas em novembro e dezembro de 2024, comparado ao mesmo período do ano anterior. O simples ato de preencher espaços em branco com cor ganhou nova vida como forma de expressão, escape e até pertencimento a uma comunidade digital.
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A transformação digital da leitura
A transformação digital é uma das grandes responsáveis pela crise das livrarias físicas. Com a popularização dos dispositivos de leitura como o Kindle, da Amazon, o consumo de livros migrou silenciosamente para o universo digital. A praticidade de carregar centenas de títulos em um só aparelho, somada aos preços mais acessíveis dos ebooks, mudou o comportamento do leitor moderno e, com ele, o cenário do mercado editorial.
O que antes era uma visita à livraria de bairro para descobrir novidades, hoje é um clique. A pandemia acelerou esse processo, mas o hábito se consolidou: para muitos, ler é agora uma atividade mediada por telas. O fechamento de livrarias não é apenas consequência de crises financeiras ou do aumento do custo de um espaço físico, é também o reflexo de uma sociedade que lê de maneira diferente.
Nunca estivemos tão distraídos
Mas essa transição levanta uma pergunta inquietante: estamos realmente lendo mais, ou apenas consumindo mais conteúdo?
Na era dos vídeos de 15 segundos, dos carrosseis no Instagram e das dancinhas no TikTok, a leitura exige um esforço que nem todos estão dispostos a fazer. O tempo que antes era dedicado a um capítulo, hoje pode ser facilmente preenchido por horas de “scroll” sem fim. A leitura, com sua exigência de silêncio, profundidade e atenção, parece ter perdido espaço para a rapidez e a fragmentação dos conteúdos digitais.
O paradoxo é claro: nunca tivemos tanto acesso a livros, mas nunca estivemos tão distraídos.
Basta observar o transporte público das grandes cidades para perceber essa mudança: o trajeto entre uma estação e outra, que antes podia ser preenchido com páginas de um livro, hoje é dominado por telas. Basta ter um pacote de dados para passar o tempo assistindo a vídeos curtos, dando likes ou trocando mensagens no whatsapp. O silêncio da leitura foi substituído pelo ruído constante da conectividade e, aos poucos, a atenção que um livro exige parece estar se tornando um luxo raro no cotidiano acelerado das metrópoles.
De olho no comportamento das gerações mais novas e o futuro das livrarias
A Geração Z, nascida em meio à hiperconectividade, cresceu com acesso instantâneo a qualquer tipo de conteúdo e isso moldou profundamente sua relação com a leitura.
Acostumados a estímulos rápidos, interativos e visuais, muitos jovens leitores demonstram preferência por formatos mais dinâmicos: podcasts, vídeos explicativos, resumos em redes sociais. Isso não significa que não leem, mas leem de outra forma, com outros objetivos e em outros suportes. Quando escolhem um livro, muitas vezes é por influência de trends do TikTok (o chamado “BookTok”), por temas que dialogam com suas angústias contemporâneas ou por autores que se comunicam diretamente com eles nas redes.
Para engajar essa geração, não basta oferecer livros: é preciso criar experiências, narrativas imersivas e conexões afetivas que rompam a barreira do papel.
O futuro da leitura depende da resposta que vamos dar
Não há nada de errado em estimular o lado artístico, tampouco em usar a arte como forma de relaxamento. A febre dos livros de colorir, como os de Bobbie Goods, mostra que há uma sede por pausas, por desacelerar e isso, em si, é legítimo. Mas é preciso olhar para esse fenômeno com um pouco mais de inquietação.
Estamos trocando Machado por marcadores, José Saramago por carrosseis de Instagram. E, enquanto as redes sociais ditam o que deve ou não ser lido, o que vale ou não o nosso tempo, assistimos passivamente ao enfraquecimento da leitura profunda, crítica, densa.
Livrarias fecham porque vendem menos, e vendem menos porque cada vez mais leitores preferem conteúdos rápidos, fragmentados, embalados por algoritmos que viciam. A Geração Z, tão conectada, não é desinteressada, mas está sendo constantemente desviada. Já os millennials, estão cansados demais para ler qualquer coisa.
O livro, esse objeto que exige tempo, silêncio e entrega, disputa atenção com vídeos de 15 segundos e notificações que não cessam.
Não se trata de nostalgia ou resistência ao novo. Trata-se de perguntar, com honestidade: estamos perdendo a capacidade de nos concentrar? De refletir? De mergulhar em ideias que não cabem em uma tela? O futuro das livrarias e da leitura crítica depende da resposta.
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